A questão do abuso de autoridade é cercada de controvérsias em um país com um contexto democrático frágil. Antes da edição da Lei nº 13.869 de 2019, tínhamos a Lei 4.898/1965, originada durante o período ditatorial. Este texto pretende analisar os aspectos penais e políticos que ambas as legislações representam, abrangendo seus impactos práticos nos dias atuais.
Em 1965, durante a presidência do Marechal Castelo Branco, foi promulgada a Lei 4.898, que estabelecia procedimentos específicos para o processamento de ilícitos e crimes de abuso de autoridade, sem detalhar tipos penais específicos. Apesar de sua intenção, a lei foi amplamente ignorada durante os anos seguintes.
Por outro lado, a Lei de 2019 surgiu em um contexto político conturbado do “pós Lava-Jato”, onde muitos políticos foram atingidos por medidas polêmicas do Ministério Público e de magistrados da justiça federal. A nova lei de abuso de autoridade surge como uma resposta a esses excessos, tentando equilibrar o combate à corrupção e a proteção de direitos e garantias. Entretanto, essa lei introduz 25 novos tipos penais, alguns já previstos na Lei de 1965, agora com independência e penas próprias.
A Lei de 2019 também apresenta em suas disposições gerais o §2º do art. 1º, que determina que divergências na interpretação de leis ou na avaliação de fatos e provas não configuram abuso de autoridade. Essa disposição visa evitar a criminalização do livre convencimento dos magistrados, limitando a aplicação da lei a casos evidentemente absurdos.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgados recentes, passou a exigir o chamado “dolo específico” para a caracterização dos crimes previstos na Lei de abuso de autoridade, tornando a demonstração do interesse escuso do magistrado uma tarefa difícil.
Apesar da nova lei ser rigorosa, sua aplicabilidade é limitada. Além disso, sua constitucionalidade está sendo questionada por associações da magistratura e do Ministério Público, que alegam que a norma criminaliza a atuação funcional de seus membros e fere a independência e autonomia desses servidores. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação dos Procuradores da República (ANPR) apresentaram a ADI 6238, sustentando que promotores poderiam ser julgados por investigar, processar e requerer providências judiciais, devido aos tipos penais “vagos e abertos” da nova legislação. De forma semelhante, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) apresentou a ADI 6239, argumentando que os dispositivos da nova lei avançam indevidamente sobre a atuação dos membros do Poder Judiciário, defendendo que as atividades dos juízes devem ser disciplinadas por lei complementar, conforme a Constituição Federal, e não por lei ordinária.
A Lei n.º 13.869, de 2019, estabelece, em seus artigos 3º e 4º, condutas que constituem abuso de autoridade, como atentados à liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio e outros direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Além disso, a lei prevê punições para medidas privativas de liberdade sem as formalidades legais, submeter pessoas a vexames ou constrangimentos não autorizados em lei, e prolongar execuções de prisão sem ordem de liberdade, entre outras situações.
A nova legislação também aborda crimes específicos, como o decreto de medidas de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais e a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem prévia intimação. A lei utiliza adjetivos como "descabido" e "injustificadamente", tornando os tipos penais mais descritivos e focados em situações excepcionais.
A implementação dessa lei gerou um debate intenso sobre o equilíbrio entre garantir a autonomia das funções judiciais e ministeriais e a necessidade de prevenir abusos de autoridade. As reações às ADIs indicam um receio de que a lei possa ser utilizada para intimidar ou limitar a atuação de juízes e promotores, refletindo a complexa relação entre poder e responsabilidade no sistema de justiça brasileiro.
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